sábado, maio 13, 2006

Dissertações frustradas.


Em tempos de lides académicas animadas, surgem tarefas que aprazem mais a gregos que a troianos por certo, todavia eu pertenço mais à secção reservada aos imigrantes de leste.

Da tradição reza que a semana do enterro é inaugurada com um sarau cultural destinado a apresentações, danças, encenações, cantorias ou somente discursos da treta. Redireccionados para este último, a CPQNTMQFSIDPA (Comissão de Pessoal Que Não Tem Mais Que Fazer Senão Inventar Desculpas Para Apanhar Bebedeiras) de pronto requereu marcação de um encontro que mais não servisse que para elaborar um documento de cariz satírico de forma a inteirar e quiçá até mesmo conquistar a competição integrada na taça UA.

O concílio estudantil fora uma realidade. Não mais que uma dúzia de elementos se reuniram ao longo de uma fileira de mesas dispostas horizontalmente num local que ainda que recatado não deixava de ser público. Copos, canecas, garrafas, jarrões, mais do que meras decorações estavam lá, não só para satisfazer o gosto dos presentes, como também para impulsionar e suportar todo o projecto. Nem só de líquidos se fez o convívio, por entre vegetais, cereais e outros mais, de preparados com nacionalidade gaulesa de tamanho reduzido predominavam as escolhas dos esfomeados.

Optou-se por, ao invés de produzir um discurso de tom formal, produzir um de tom irónico e lúdico, nunca esquecendo a vertente critica. Para dar cara a essa mesma história um herói foi criado: Sem Pescoço. Da história de Sem Pescoço vincaria o facto de ser apenas mais um pobre desgraçado, um pobre desgraçado vítima da sociedade e dos seus actos.

As palavras com dificuldade iam fluindo, enquanto se enchiam estômagos e esvaziavam os recipientes que acolhiam as bebidas, ideias iam sendo lançadas na expectativa de que algo se aproveitasse para a tal escritura. Entre aventuras e desventuras o pobre catraio alternou entre conversas “gregóricas”, esperas desesperantes, negócios de teor carnal o que só poderia terminar mal, convergindo para o insucesso profissional e pessoal do personagem.

Cerca de dois pares de horas e 4 milhões de neurónios depois, finalmente dávamos por concluída a nossa tarefa. Relidas que estavam as páginas, sorrisos se estamparam nas faces dos seus autores. Toda uma aura positiva circundava aquelas palavras, toda uma confiança parecia colocar antecipadamente aquela composição por entre as vencedoras, toda uma certeza garantia que pelo menos um bom trabalho fora realizado e a não eleição carregaria todo um sentimento de injustiça.

Dias antes do anunciado sarau, o resultado fora afixado, de acordo com as profecias exaltava por entre os ilustres o nome de Ambiente, o seu orador: Marco Paulo (assim o insistem mesmo não me identificando como tal). Um misto de ansiedade e nervosismo me invadira. Por um lado o conforto de pelo menos figurarmos por entre os 5 melhores, por outro a responsabilidade de elevar ao mais alto nível o nome do curso.

Pouco mais que 24 horas seria o tempo de preparação, pouco mais que uma página o que haveria a dizer, pouco mais que 5 minutos todo o espectáculo. Limitados reconheço que são os meus dotes dedicados à representação, limitada também é a minha experiência nesse campo, no entanto, decidi apoiar-me no indivíduo a quem devo mais respeito: eu próprio. De fronte para o espelho proferi, em voz alta e pela primeira vez, as marcantes palavras. De um jeito teatralmente forçado, dei por mim como que a recitar Shakespeare. A colocação vocal assemelhava-se à de um espanhol a pedir bacalhau com natas num tasco à beira mar, a respiração defeituosa dava ideia de que estaria a sofrer um ataque de asma.

Cedo desisti, pensei por breves momentos em somente subir ao palco e ler da forma mais instintiva possível, no entanto, recordei que não seria em nome pessoal que discursaria perante a plateia.

Não tardaram a passar as escassas horas que me separavam não do evento em si mas do dia do próprio. Novamente solitário, coloco um som de fundo que me conferisse um ritmo apropriado à leitura e recomecei o treino. Invariavelmente vacilava por entre o timbre fanhoso e o engasgo seguido de um ridículo e seco “gargalho”.

Cresce a ansiedade, cresce o nervosismo e juntamente cresce também o desespero. O jantar estava marcado por volta das 19 horas, cerca de 90 minutos antes do início das cerimónias. Apressadamente visto o traje oficial representativo da academia, engraxo os sapatos, ajeito a gravata e coloco-me em marcha qual pinguim em frenético deslize por gelada montanha.

A tropa ainda preparava o tacho e como tal o vazio que se instalara propagou-se, conduzindo a uma elevada produção de adrenalina, responsável directo pela perda de apetite e aumento de secura considerável. Impaciente, irrequieto e por fim algo desapontado pela amostra de local com que me havia confrontado. Esperando iluminação especialmente montada para o efeito, bancadas coloridas de forma a alegrar um pouco mais a área, um púlpito onde poderia colocar a cabulazinha e quiçá uma garrafinha de água, enfim um cenário oposto com o que me deparei.

Das desocupadas e cinzentas bancadas, ao negro e tenso ambiente, apenas simples microfones se revelavam úteis naquele tenebroso palco, dos importantes da cidade ou até somente da universidade não se lhes ouviam simples murmúrios, ninguém estava lá. Ninguém, se quisermos adoptar uma postura altiva, já que vários grupos culturais marcavam presença, bem como os meus homólogos oradores e outros que me acompanhavam no sentido de me incentivar.

O alinhamento estava definido, a minha actuação situar-se-ia algures pela bissectriz do programa geral. Com o tempo de sobra aproveitei para amplificar o nervosismo a um nível quase extremo que, não me levando em tempo algum a ponderar desistências, serviu para humedecer a roupa interior com algumas pinguinhas.

Analisando que ia os discursos dos meus “concorrentes”, verifiquei que não era o único a não se sentir muito confortável com a situação. Avançava em direcção à lateral do imponente albergue consciente de que tudo o resto de nada valeria, apenas eu, uma folha de papel impressa e um microfone. Erigida sobre a escadaria, ostentando um sorriso, uma afável jovem também de igual modo denotava um brilho nos olhos revelador de algum receio.

De modo a quebrar um pouco o gelo partilhamos experiências no campo da escrita dos discursos, o tempo rolou de forma saudável até sermos interrompidos pelo momento de troca de artista. Desportivamente fluíram desejos de boa sorte de parte a parte e restou apenas a asfixiante espera.

A cançoneta entoada pela colega anunciava um fim próximo da sua performance, acerquei-me da abertura do acesso principal enquanto a mesma se despedia dando lugar aos apresentadores que me introduziriam sob o apelido de “Marco Paulo”. Entrei, fui brindado com o incentivo por parte destes, percorri o palanque, ajeitei o gabão devidamente acomodado no ombro esquerdo, confrontei a plateia, e em jeito de saudação elevei o braço onde acarretava as sábias palavras e contemplando o desmedido infinito vociferei em alta voz: “Caros amigos, não estou aqui para vos ler um discurso. Estou aqui para vos ler uma história”.

Co’a breca. Primeira frase e senti que me afundava rapidamente em areias pantanosas sem ter meio de alcançar lianas que me valessem salvação. Efectivamente não era o que pretendia ter dito mas havia que continuar. A estratégia de início definida teria que ser seguida, aquele mísero papel para não mais teria que servir que para me conduzir em momentos de aflição.

Os nervos vibravam a frequências detectáveis pelo comum radar submarino, e se não julgara que o começo fora bom, em pouco mais que 30 segundos surgiria a primeira “branca”. Um total apagão acompanhado por um tremido sorriso, poderiam ter sido o triste final daquela estranha experiência. Dominado pelo instinto, pois havia já muito que a razão me abandonara, alcanço o documento, procuro situar-me o mais rápido possível de modo a que possa retomar a caminhada e solto três gemidos que se confundem com pequenas gargalhadas.

Estava de volta, repescado das profundas areias alteio a cabeça e com uma falsa convicção tento disfarçar o que se havia passado. Imbuído do espírito artístico fui levado algures por entre sotaques beirões, improvisos relativamente bem sucedidos e no final uma agradável ovação por parte da audiência.

Abandonei aquele local com a sensação de que toneladas haviam sido retiradas de cima de mim, a ansiedade deu lugar a uma espécie de euforia que permaneceu por largas horas. As primeiras impressões foram muito positivas, em geral parecia que o desempenho não fora tão mau como o que me tinha parecido no momento.

De qualquer das formas restava apenas aguardar pelo resultado que sairia dias depois. Bem se esperou, o mesmo fui anunciado e o vencedor acabou por ser